segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Grevistas do Maracanã e dupla porta do SUS

Paulo Capel Narvai, doutor em Saúde Pública e professor titular da Universidade de São Paulo
via Blog Saúde com Dilma

Por que sindicalistas não reagem a lei aprovada em SP da subcidadania? Grevistas do Maracanã é uma pista que pode esclarecer esse silencio

É insólito que o governo paulista instaure uma subcidadania na saúde, impondo a “dupla porta” no SUS estadual. Aos cidadãos de primeira, titulares de planos de saúde, acesso privilegiado aos serviços de saúde custeados com impostos pagos por todos. Aos de segunda, sem planos, as filas e restrições sobejamente conhecidas. Sobre esta ilegalidade o essencial já foi dito, motivando inclusive ação do Ministério Público. Contudo, para compreender por que a Assembléia Legislativa aprovou a lei da subcidadania, convém analisar o mapa da votação, comparando-o com a lista de doações de operadoras de planos de saúde a campanhas eleitorais. É de conhecimento público que parlamentares recebem polpudos apoios dessas empresas. Na Assembléia, e também no Congresso Nacional, não estranha que elas defendam seus interesses, ainda que isso contrarie o interesse público.
Não basta, porém, constatar que em São Paulo se tenha chegado à subcidadania. É preciso indagar por que os trabalhadores e seus sindicatos, com sua força política, não reagem a esse ataque a um direito social elementar. Seu silêncio induz pensar que chancelam a dupla porta. O governo paulista não poderia contar com melhor apoio político para o descaminho que pratica em São Paulo e propõe ao País.
Uma pista para esclarecer o silêncio dos sindicalistas veio do Maracanã. Os trabalhadores que reconstroem o legendário estádio carioca de futebol fizeram greve. Exigiram melhores salários, o que é justo. Reclamaram melhores condições de trabalho, o que também é muito justo. Mas pediram planos de saúde para seus familiares, o que é questionável. Ainda mais porque, segundo um representante do movimento, eles não querem “um plano qualquer”. Querem um “plano VIP”. Ao defender o plano, argumentou desdenhando o SUS e desqualificando-o. Mas nada disse sobre o que querem os trabalhadores para o SUS. Como se o destino do sistema público de saúde brasileiro não lhes dissesse respeito.
 Essa desvalorização dos serviços públicos, inclusive dos relativos à concretização de direitos sociais, como educação e saúde, vem abrindo caminho para fenômenos como a dupla porta do SUS paulista. É como se governos estivessem autorizados a não se preocuparem e não investirem no desenvolvimento e qualificação da administração pública, com base em princípios universalistas e equânimes. Ao reivindicar “serviços VIP”, que supostamente o mercado oferece, as lideranças dos trabalhadores parecem ignorar que o mercado transforma direitos sociais em mercadorias e reduz políticas públicas a meros negócios, inclusive com ações nas bolsas de valores, como é o caso de empresas de saúde e educação. Vinculando direitos sociais ao mercado, e submetendo-os ao jogo de rentistas e de toda sorte de especuladores, os trabalhadores fazem o jogo do capital financeiro e dos que não vêem objeções éticas em fazer negócios com esses direitos. Acumular e reproduzir capital, à custa de doença e morte, lhes parece tão natural quanto respirar.
 Ao colocar planos de saúde em suas pautas de negociação, os trabalhadores fazem o jogo do capital. Seus agentes, com satisfação, lhes estimulam a fazer isto. Seus negócios florescem com o beneplácito de dirigentes sindicais de todo o espectro ideológico. Desde a central sindical mais pelega até  mais esquerdista, a reivindicação de planos de saúde frequenta, impávida, desde meados do século passado, todas as pautas de negociação. Obter a concessão de planos de saúde – coisa que patrões sempre fazem sem reclamar – parece ter, simbolicamente, sabor de “conquista”, de “vitória” obtida “na luta contra o capital”. Mas essa “conquista” nada tem a ver com a saúde dos trabalhadores e suas famílias, que segue sendo majoritariamente garantida pelo SUS e outros serviços sociais, conforme demonstram pesquisas científicas. Contudo, ninguém defende o SUS. Por quê?
 As lideranças sindicais precisam, com urgência, reinventar suas pautas de negociação e buscar outros meios de “arrancar conquistas dos patrões”. Planos de saúde não são instrumento adequado para isto. Apenas iludem os trabalhadores, com “planos” que nada têm de planos, e muito menos de saúde. Falar em algo “VIP” nesse contexto é piada de mau gosto. Seguir pedindo “planos de saúde”, como fizeram os grevistas do Rio, é colocar os interesses dos trabalhadores no mesmo rumo dos interesses dos que fazem negócios com doença e morte. Um gol contra foi feito no Maracanã.
No caso da ilegal dupla porta do SUS paulista, em que empresas que vendem “planos de saúde” se valem de serviços públicos para atender seus clientes privados, o silêncio das centrais sindicais parece decorrer de sua opção preferencial por tais “planos”. Contudo, que razões teriam líderes sindicais operários para fazerem essa opção? Com a palavra as centrais sindicais. Até que esclareçam sua apatia e silêncio devem ser consideradas, politicamente, também responsáveis pela excrescência da dupla porta, que agride o SUS e ofende a todos. Com sua indiferença, não apenas fazem um gol contra, mas dão um verdadeiro chute na cidadania.

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