quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Organizações Sociais’ e ‘Fundações de Saúde” desaparecem da Carta da 14ª Conferência Nacional de Saúde


Paulo Capel Narvai (*) 

No  final  da  tarde  de  domingo,  4/12/2011,  após  cinco  dias  de  trabalhos  em  ritmo intenso, encerrou-se mais uma Conferência Nacional de Saúde (CNS), desta vez a de número 14. Ao contrário de pelo menos as cinco últimas que a precederam, esta Conferência encerrou suas atividades dentro do tempo previsto e decidiu sobre as 15 diretrizes e as 346 propostas analisadas em 17 grupos de trabalho e na plenária final. Um avanço organizativo que deve ser creditado  ao  Conselho  Nacional  de  Saúde,  uma  vitória  da  democracia  participativa,  uma conquista dos que lutam pelo direito à saúde no Brasil.  
Contudo,  no  apagar  das  luzes  da  14ª  CNS,  os  delegados  ainda  presentes  na  plenária final  aprovaram  um  documento,  não  previsto  no  regimento  nem  no  regulamento  do  evento, intitulado “Carta da 14ª Conferência Nacional de Saúde à sociedade brasileira”. Tendo em vista o  ineditismo  de  aprovar  um  documento  desse  tipo,  cujo  conteúdo  era  desconhecido  dos delegados até aquele momento, a mesa coordenadora dos trabalhos consultou a plenária sobre se  aceitava  ou  não  apreciar  e decidir  sobre  o  documento.  Estabeleceu-se,  de  imediato,  um impasse. Porém, mesmo diante de efusivas manifestações contrárias por muitos delegados, a mesa argumentou sobre a necessidade “democrática” de se conhecer o teor do documento. Foi um inusitado desrespeito à democracia, em nome da... democracia. Não valiam mais as regras definidas  no  regimento  aprovado  pelo  Conselho  Nacional  de  Saúde  nem  as  fixadas  pelo regulamento,  aprovado  na  longa  plenária  de  abertura.  Naquele  momento,  curiosamente, reivindicavam-se como democratas os que desconsideravam as regras e eram convertidos em antidemocratas  os  que  pediam  respeito  às  regras.  Dada  a  insistência  e  contundência  da manifestação negativa à  discussão da  Carta,  o  próprio  Ministro da  Saúde,  Alexandre Padilha, assumiu  a  palavra  e  encaminhou  a  votação,  argumentando: “Pessoal,  ninguém  vai  ganhar nada no grito aqui (...). Essa mesa não fará nada que esse plenário não defenda. Vamos ter calma. Ninguém vai ganhar nada no grito (...). Nós vamos colocar em votação”.  
A proposta dividiu o plenário e, segundo avaliação da mesa, venceu a proposta de ler e decidir  sobre  a  Carta.  O  ministro  fez  valer  sua  autoridade  e  venceu  a  proposta  por  ele defendida. Ganhou, segundo Padilha, a “democracia do voto”. Porém, o Ministro não precisava ter  se  desgastado  politicamente  com  isso.  Tinha  em  mãos  uma  realização  de  grande significado:  o  absoluto  sucesso  da  conferência  realizada  sob  sua  presidência  no  Conselho Nacional  de  Saúde.  Era  declarar  encerrada  a  14ª  CNS  e  comemorar  o  feito.  Mas, inadvertidamente  creio,  se  enredou  na  aventura  de  uma  Carta  despropositada  e desnecessária.  
Não se sabe quantos dos 2.937 delegados ainda estavam presentes e participaram da votação.  Numa  clara  demonstração  da  confiança  dos  delegados  na  comissão  organizadora,  a Carta  da  14ª  CNS  foi,  enfim,  aprovada,  para  satisfação  dos  que  a  defendem.  Pessoalmente, tenho  grande  identificação  com  o  conteúdo  do  documento,  que  em  boa  parte  expressa  o conjunto  de  diretrizes  e  propostas  aprovadas  para  o  Relatório  Final  da  14ª  CNS.  Mas,  da maneira como foi obtida, trata-se, sem dúvida, de uma vitória de Pirro. 
Estou entre os que temem o custo político dessa vitória, pois a forma como o processo foi  conduzido,  desconsiderando  o  regimento  e  o  regulamento  da  conferência,  e  impondo  aos delegados que decidissem sobre sua aprovação ou rejeição, produzirá efeitos muito negativos sobre a credibilidade desta e de outras conferências. A leitura e votação da Carta da 14ª CNS levou  19  minutos  e  3  segundos.  Não  se  sabe,  também,  nem  a  origem  nem  quem  assina  a Carta, pois há duas versões circulando, a primeira assinada pela “Comissão Organizadora”; a segunda  pela  “Plenária”.  No  caso  da  primeira  versão,  isso  deveria  ter  sido  informado  ao plenário, o que não aconteceu. Alguns delegados atribuíram a autoria à Comissão de Relatoria o que, posso assegurar, não corresponde aos fatos. Quanto à segunda versão, trata-se de um absurdo lógico, pois “Plenária” é instrumento organizativo, “plenária” não é sujeito, portanto, 
“plenária” não pode ser signatária de coisa alguma.  
Não obstante a grande sintonia do conteúdo da Carta com o Relatório Final da 14ª CNS, alguns delegados indicaram o “desaparecimento” na  Carta,  de  alguns  termos  e  expressões muito freqüentes no presente, nos debates sobre os rumos do SUS e da política de saúde no Brasil, como, por exemplo, “organizações sociais” e “fundações de saúde”. Afirmam, também, que há um trecho em que a Carta é ambígua, não expressando exatamente o que foi decidido na  14ª CNS,  mas  que  está  presente  com  clareza  em seu Relatório Final. Esses delegados  se referem  ao  seguinte  trecho:  “Defendemos a gestão  [grifos  no  original]  100%  SUS:  sistema único e comando único, sem ‘dupla‐porta’, contra a terceirização da gestão e com controle social amplo. A gestão deve ser pública e a regulação de suas ações e serviços deve ser 100% estatal,  para  qualquer  prestador  de  serviços  ou  parceiros.  Precisamos  contribuir  para  a 
construção do marco legal para as relações do Estado com o terceiro setor”. 
Argumenta-se que “gestão pública e regulação 100% estatal” deixa aberta a porta para que “ações e serviços” sejam terceirizados, como está  acontecendo  em  várias  localidades brasileiras,  apesar  da  oposição  frontal  dos  que  defendem  que  as  ações  e  serviços  de  saúde sejam públicas, executadas por instituições públicas. E isto é o relevante no contexto, pois é irrelevante  o  debate  sobre  a  gestão  e  a  regulação  serem  estatais,  já  que  há  consenso  sobre isto entre os defensores do SUS. Além disso, o Relatório Final não menciona o “terceiro setor” que,  para  surpresa  de  muitos,  aparece  na  Carta,  saído  não  se  sabe  bem  de  onde,  nem  por quê.  
Cabe  registrar,  sobre  isto,  que  o  Relatório  Final  da  14ª  CNS  aprovou  um  conjunto  de propostas  que  esclarecem,  suficientemente,  o  que  os  delegados  pensam  sobre  a  gestão  e  a execução  das  ações  e  serviços  de  saúde.  Vale  a  pena  reproduzir  algumas  dessas  propostas:  “Garantir que a gestão do Sistema Único de Saúde (SUS) em todas as esferas de gestão e em todos  os  serviços,  seja  100%  pública  e  estatal,  e  submetida  ao  Controle  Social  (Diretriz  5  – Proposta 1). Rejeitar a cessão da gestão de serviços públicos de saúde para as Organizações Sociais (OS), e solicitar ao Supremo Tribunal Federal que julgue procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) 1923/98, de forma a considerar inconstitucional a Lei Federal  nº 9.637/98,  que  estabelece  esta  forma  de  terceirização  da  gestão  (Diretriz  5  –  Proposta  2). 
Rejeitar a cessão da gestão de serviços públicos de saúde para as Organizações da Sociedade Civil  de  Interesse  Publico  (OSCIP)  (Diretriz  5  –  Proposta  3).  Rejeitar  a  proposição  das Fundações  Estatais  de  Direito  Privado  (FEDP),  contida  no  Projeto  de  Lei  nº  92/2007,  e  as experiências estaduais/municipais que já utilizam esse modelo de gestão, entendido como uma forma  velada  de  privatização/terceirização  do  SUS  (Diretriz  5  –  Proposta  4).  Garantir  que  os convênios e contratos do SUS sejam apreciados e aprovados previamente pelos conselhos de saúde,  nas  três  esferas  de  governo,  antes  de  sua  assinatura,  e  aumentar  os  recursos destinados ao fortalecimento dos órgãos de fiscalização, controle e auditoria do SUS (Diretriz 2 -  Proposta  6).  Respeitar  a  constituição  e  as  leis  orgânicas  do  SUS,  de  forma  a  restringir  a participação da iniciativa privada no SUS ao seu caráter complementar; que as três esferas de gestão  garantam  o  investimento  necessário  para  a  redução  progressiva  e  continuada  da contratação  de  serviços  na  rede  privada  até  que  o  SUS  seja  provido  integralmente  por  sua rede própria (Diretriz 5 - Proposta 7). Submeter aos Conselhos de Saúde, durante o processo de  elaboração  do  orçamento  da  área  da  saúde,  os  Projetos  de  Lei  elaborados  pelo  Poder Executivo  que tenham  relação  com  as políticas públicas de saúde, para  apreciação, debate e 
deliberação antes de enviar ao Legislativo (Diretriz 2 - Proposta 37)”. 
Como se vê, a ambiguidade da Carta não decorre de alguma suposta ambiguidade do que foi aprovado na 14ª CNS, independente de se concordar ou não com o que foi aprovado.  
O ruim do episódio é que o modo como tudo se deu, com decisões dessa importância e significado  acontecendo  em  menos  de  20  minutos,  numa  plenária  já  bastante  esvaziada  e dividida quanto a analisar ou não o documento proposto, cuja origem ninguém sabia ao certo, contribuiu para a propagação do sentimento de que o papel dos delegados  em conferências é apenas  o  de  legitimar decisões  que  interessam  ao  Estado.  Isto  não  contribuiu,  e  certamente não fortalece, a consolidação e o aprofundamento da democracia no País.  
O  bom  é  que  a  Carta  assume,  no  último  parágrafo,  um  compromisso  com  a “implantação de todas as deliberações da 14ª CNS”. Sobre até onde irá esse compromisso, em toda a sua radicalidade, o tempo dirá. 

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(*) Doutor e Livre-Docente em Saúde Pública. Professor Titular da USP. Membro da Comissão 
de Relatoria da 14ª Conferência Nacional de Saúde. 

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