quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Postos de saúde têm consulta relâmpago

Para cumprir meta de atendimento sem cumprir horário, profissionais chegam a fazer consultas de dois minutos

Médicos fazem acordos informais em unidades da rede pública e trabalham menos tempo do que deveriam

Talita Bedinelli
Afonso Benites

Folha de São Paulo

Em uma manhã de quarta-feira, 27 mulheres, a maioria delas grávidas, aguardavam a chegada de uma ginecologista no corredor apertado da UBS (Unidade Básica de Saúde) Paraisópolis, localizada na zona sul de São Paulo.
A médica chegou uma hora e 43 minutos atrasada e foi embora três horas depois, após atender as 27 pacientes. Cada consulta, acompanhada do lado de fora da sala pela Folha, durou, em média, seis minutos.
A ginecologista foi contratada para um trabalho de 20 horas semanais na UBS Paraisópolis, mas, segundo a equipe do posto, ela vai ao local apenas duas vezes por semana e fica quatro horas em cada um dos dias. No dia em que a Folha esteve lá, ela ficou três horas. Este é apenas um de muitos casos de médicos da rede pública da Grande São Paulo que não cumprem horário.
Em duas semanas de reportagem, a Folha flagrou 20 profissionais nessa situação. Segundo pessoas da área de saúde ouvidas, o número é maior graças a acordos informais entre gestores de unidades de saúde e os médicos.
Eles ficam dispensados de cumprir o horário de trabalho desde que atendam uma meta de consultas. Nos postos de saúde da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, a Folha apurou que a meta é de 80 pacientes por semana para cada um dos médicos. A prefeitura nega a prática de acordos, diz que o horário tem de ser cumprido e afirma que vai apurar os casos apontados pela Folha.



CONSULTA RELÂMPAGO
Como acumulam outros trabalhos, incluindo atendimentos em clínicas particulares, os médicos cumprem a meta no menor tempo possível, o que leva à realização das "consultas relâmpago" testemunhadas pela Folha -alguns atendimentos duraram menos de dois minutos. Nos corredores das UBSs, as mulheres que aguardavam ser atendidas reclamavam entre elas que há médicos que não tocam nos pacientes e parecem "sentir nojo" deles.
A maioria dos médicos flagrados pela Folha atende em UBSs (Unidades Básicas de Saúde) e AMAs Especialidades (Assistência Médica Ambulatorial) da Prefeitura de São Paulo, que funcionam só com consultas marcadas.
Dentre os médicos acompanhados pela reportagem, alguns trabalham ainda em postos das prefeituras de Guarulhos, Diadema e Itapecerica da Serra e do governo do Estado, onde também não cumprem seus horários.
Um dos médicos afirmou, na condição de não ser identificado, que trabalha 12 horas a menos por semana em um hospital público na zona leste de São Paulo, com a permissão do chefe. Pelas 36 horas semanais que deveria permanecer lá, recebe cerca de R$ 6.000 por mês.

SÓ UMA HORA
Dentre os casos descobertos pela reportagem, há desde profissionais que trabalham uma hora a menos por dia até outros que permanecem no posto só uma hora.
É o caso de um dos médicos na UBS Jardim Engenheiro Goulart, zona leste de São Paulo: ele chegou às 10h50 e saiu às 11h50. As consultas duraram entre 2 e 8 minutos.
Além das consultas rápidas, o não cumprimento do horário integral pelos médicos gera outro problema: pacientes esperam tempo demais para conseguir marcar uma consulta. Em algumas das UBSs visitadas, as atendentes afirmavam que só havia vagas na agenda de 2012. A saúde foi a área da administração do prefeito Gilberto Kassab mais criticada em recente pesquisa Datafolha.


Espera é de uma hora; a consulta dura um minuto

AFONSO BENITES
DE SÃO PAULO

Apurava uma reportagem sobre a rede pública de saúde quando decidi passar por uma consulta na AMA do Jardim Romano por estar com dores no peito.
A espera pelo atendimento foi de uma hora e três minutos. Ao entrar no consultório, o médico já tascou: "Que que 'cê' tem?". Não havia nem sentado ou sido cumprimentado e meu tempo já estava valendo. Entre minha explicação, a verificação dos batimentos e a entrega de um pedido de eletrocardiograma foram 1 minuto e 37 segundos.
Com o resultado do eletro, o doutor disse que eu não tinha nada. Ainda assim mandou consultar um clínico geral na UBS. Detalhe, o médico que me atendeu era um clínico. Semanas depois, um cardiologista do meu convênio diagnosticou uma leve arritmia. 



Prefeitura afirma que vai aumentar controle de horas

Secretaria Municipal da Saúde não reconhece os acordos, mas diz que casos denunciados serão investigados

DE SÃO PAULO

A Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo disse que "não compactua com nenhuma redução da jornada de trabalho de seus funcionários" e que todos os casos apontados pela Folhaserão apurados e, se comprovados, punidos "com o rigor da lei". O órgão disse ainda que vai implementar até o final deste ano um sistema de reconhecimento biométrico (por impressão digital) e fotográfico de seus profissionais e pacientes, o que deverá permitir um acompanhamento maior da jornada de trabalho.
Por meio do sistema, os médicos e outros profissionais serão identificados logo na entrada do local de trabalho. E como os prontuários dos pacientes também serão informatizados, será possível ainda acompanhar cada atendimento feito por eles e monitorar em tempo real suas atividades, de acordo com a Secretaria da Saúde.
Atualmente, diz o órgão, há mecanismos de controle das jornadas dos médicos, como o acompanhamento das agendas dos profissionais e a disponibilização dos horários de cada um deles nas unidades de saúde, "para que a população também possa auxiliar na fiscalização e denunciar quando necessário".

FALTA DE MÉDICOS
A secretaria disse também que há falta de médicos no mercado e que está buscando uma forma legal de flexibilizar as jornadas de trabalho. Um projeto de lei, em trâmite na Câmara, deve permitir que a contratação emergencial de médicos para plantões de 12 horas por semana.
Atualmente, essas vagas só podem ser preenchidas por meio de plantões de 24 horas, "o que não atrai o profissional", afirma a nota enviada.
Sobre as consultas de curta duração, a secretaria afirmou que é preciso levar em conta o caso de cada paciente. "Uma primeira consulta, por exemplo, pode demorar mais do que a entrega de um exame ou um retorno." O Governo de SP afirmou que abriu sindicância interna para apurar os fatos e que está implementando pontos eletrônicos em todas as unidades do Estado até o final de novembro deste ano.
A Prefeitura de Guarulhos disse que não concorda com "ajustes" para o cumprimento de metas e que não há acordos como esses ali. A cidade também implantará pontos eletrônicos e disse que vai apurar os dois casos informados pela Folha. Diadema afirmou que a profissional apontada reduziu, a pedido, sua jornada de trabalho e que a cumpre integralmente. Itapecerica da Serra não retornou a reportagem até a conclusão desta edição.

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