segunda-feira, 27 de junho de 2011

O SUS e a Reforma Sanitária: Possibilidades e Potencialidades

O Blog da APSP publica texto de Nelson Rodrigues dos Santos, presidente do Idisa, feito para o 2º Simpósio Nacional do Cebes, em julho.  

1.   Referencial Jurídico-Legal
2.   Política Pública de Saúde no Brasil: a Implícita (Real) e a Explícita (Legal)
3.   A Política Pública de Saúde Implícita, o Rumo e o Referencial Jurídico-Legal
4.   Possibilidades e Potencialidades


Contribuição ao Debate no 2º Simpósio Nacional do CEBES-Jul./2011.

Nelson Rodrigues dos Santos – 14/Jun/2011                                                                  
Membro da Diretoria do CEBES.

1. Referencial Jurídico-Legal
                 O entendimento e interpretação das disposições constitucionais e infraconstitucionais à luz dos seus princípios e diretrizes para o SUS, como os da seguridade social, da relevância pública, do direito de todos e dever do Estado, da Universidade, da Igualdade, da Integralidade, da Descentralização, da Regionalização, da Direção Única, da Participação e outros, assim como a expectativa quanto ao desenvolvimento dos papéis do Direito Público, do Direito Privado, do Estado de Direito, das jurisprudências acerca do significado dos direitos individuais, dos direitos e interesses difusos, coletivos e sociais, encontram-se iluminados pelo conjunto desses princípios e diretrizes ou “Rumo Maior”, que sob o ângulo da sua realização, foi a “Locomotiva” do SUS. Ressalte-se que foram gerados pela relação Sociedade-Estado: “Um processo social libertário, emancipatório e instituinte, ao qual o Direito deve estabelecer e instituir”, segundo Jairo Bisol. Esta é a política de saúde explícita, debatida abertamente pela sociedade e pelos constituintes, aprovada e constante na Constituição/88 e Lei Orgânica da Saúde/90. Vale citar Guido Ivan de Carvalho e Lenir santos em seu livro “Sus-Comentários à Lei Orgânica da Saúde”, cuja primeira edição é de 1.994: “Alguns dos elementos constitutivos do SUS são, por si mesmos, ideias-força para o agir político e administrativo dos responsáveis pela condução do sistema e, juntamente com outras ideias-força não privativas do marco teórico do SUS, devemn revestir  e permanentemente orientar a prática dos atos no âmbito do sistema e na interação deste com outras instâncias governamentais e com a própria sociedade. Exemplos dessas ideias-instrumentos: 1. Unicidade conceitual do sistema, 2. A relevância pública das ações e serviços de saúde, 3. O imperativo da representação do setor saúde no centro das decisões políticas que o afetam, 4. Papel e competência, 5. A descentralização político-administrativa com ênfase na municipalização das ações e serviços, e 6. A participação da comunidade e o controle social na gestão do SUS.” Seguiram-se mais de 20 anos de implementação do SUS, com complexa e inusitada acumulação de situações, tensões e conflitos. Abordaremos questões que vemos como centrais, nessa acumulação para nos permitir retornar à dinâmica do referencial jurídico-legal.
2. Política Pública de Saúde no Brasil desde os anos 90: Implícita (Real) e a Explicita (Legal)
                 Seguem exemplos de procedimentos de políticas administrativas da esfera federal do poder Executivo, que denominamos de estratégias, por estarem pressupostamente voltadas para a implementação dos princípios e diretrizes constitucionais e infraconstitucionais (“rumo maior”), cuja formulação e aplicação são de sua responsabilidade. Essas estratégias podem ser entendidas como “rumos adicionais” adequados a diversas conjunturas e situações, mas pressupostamente congruentes com o “rumo maior”.   
     
          2.1. Retração do componente federal do financiamento, de modo uniforme, inclusive após EC-29 em 2.000, parcialmente compensada com a elevação dos componentes estadual e especialmente o municipal, que coloca hoje no SUS, 30% acima do mínimo de 15% dos impostos municipais. Essa retração mantém o financiamento público entre os mais baixos do mundo, tanto no per-capita anual, como na % do PIB: US$ 340 e 3,8%, contra US$ 2.000 e 6 a 8% em média, nos países com os melhores sistemas públicos: Canadá, quase toda a Europa, Japão, Coréia, Austrália, Nova Zelândia e outros.  
          2.2. Blindagem política e normativa que marginaliza os movimentos e formulações de reformas administrativas e democráticas do Estado que visam romper com o secular centralismo, burocratismo, ineficiência, ineficácia e desperdício e reestruturá-lo para dar conta das demandas sociais reconhecidas e assumidas pelos princípios e diretrizes constitucionais. Os fortes resquícios do Estado Unitário patrimonialista, mantém a administração direta e autárquica desestruturadas para as demandas sociais, impeditivas da necessária descentralização e autonomia gerencial pública supervisionada da prestação de serviços, com contratos de metas, desempenho e qualidade. E por isso, um dos fatores para transferir responsabilidades públicas para empresa privadas.
          2.3. Crescimento dos subsídios federais à produção e consumo privados de bens e serviços de saúde, em especial na saúde “suplementar” (planos e seguros privados), entre deduções e isenções tributárias, co-financiamento de planos privados aos servidores federais, o não ressarcimento ao SUS, pelas empresas de planos e seguros privados, dos gastos dispendidos com seus afiliados. O total anual desses subsídios equivale, segundo estimativas preliminares, a mais de 25% do faturamento do conjunto de todas as empresas e planos de seguros privados de saúde, ou perto de 40% do gasto anual do Ministério da Saúde, ou por volta de 70% do acréscimo ao orçamento desse Ministério, caso aprovada a regulamentação da EC-29 com 10% da RCB para a saúde. O crescimento anual desses subsídios é expressivamente maior que o dos gastos do MS: somente as deduções e isenções cresceram em 73,6% entre 2003 e 2007, contra 49,9% nos gastos do MS. Outras relações público-privadas, como a continuidade da remuneração dos prestadores privados complementares por produção com perversa tabela de procedimentos – valores, superposição na rede privada, de contratos/convênios pelo SUS com credenciamento pelas empresas de planos e seguros privados, o crescimento explosivo de entes privados fornecedores de pessoal de saúde para os serviços públicos, a entrega de estabelecimentos públicos de saúde para gerenciamento privado, podendo vender os serviços públicos no mercado, a privatização da regulação das unidades públicas geridas por entes privados, a postergação sem justificativa técnica desde 1.998, da implementação do cartão saúde do cidadão que acessa a cruza todos os atendimentos e procedimentos de saúde realizados pelo SUS e pela saúde privada suplementar, apesar dos vultuosos recursos já dispendidos nesse projeto, etc. revelam a generalização de ampla promiscuidade predatória pré-republicana na relação público-privadas. Este deveria ser o espaço da construção de possíveis parcerias público-privadas em situações definidas com real responsabilidade pública, no bojo de efetiva reforma político-administrativa e democrática do Estado.
                 Os exemplos supracitados de estratégias pressupostamente implementadoras dos princípios e diretrizes do SUS, vem revelando há mais de 20 anos:
a) Sua grande capacidade de indução e desdobramentos normativos na implementação do SUS e da própria política pública de saúde, entendidas como “rumos adicionais”, b) sua elevada incongruência com o “rumo maior” (princípios e diretrizes constitucionais e infraconstitucionais), c) sua vigência e implementação se desenvolvendo no decorrer dos mais de 20 anos do SUS, uniforme e gradativamente, ao nível de política mais de Estado de que de Governo, envolvendo todos os governos e respectivas coligações partidárias, e, d) sua formulação e atualizações oriundas no poder Executivo, centradas nos Ministérios da Fazenda, da Casa Civil e do Planejamento, Orçamento e Gestão (“núcleo de Estado”), reservando ao Ministério da Saúde as incumbências da convivência ou conivência e normatização racionalizadora dos desdobramentos no interior do sistema público de saúde, incluindo a melindrosa construção de parcerias e pactuações com os Estados, DF e Municípios, com critérios de correção iníqua de valores da tabela de pagamentos, dos tetos financeiros nos repasses federais, na profusão de portarias ministeriais normativas, e na angustia e tensão do MS discursar a política de saúde explicita (legal), e normatizar sua realização sob a hegemonia da implícita (real).
                 Outros exemplos de estratégias, agora congruentes devem ser considerados, como: 2.4. Ordenação do processo da descentralização com ênfase na municipalização e criação dos colegiados interfederativos, 2.5. Criação dos Fundos de Saúde e dos repasses Fundo a Fundo, 2.6. Implementação da Direção única em cada esfera, incluindo a extinção do INAMPS, 2.7. Inusitada elevação da capacidade de gestão descentralizada e elevação da produtividade, que em uma década incluiu metade da população, antes excluída de qualquer sistema de saúde, 2.8. Configuração em todo o território nacional de alguns milhares de “nichos” locais de experiências exitosas, a grande maioria no âmbito da atenção básica, compartilhadas por gestores locais, profissionais de saúde, incluindo agentes comunitários e representações de conselhos locais de saúde, objeto de seleções para a exposição de mostras de experiências exitosas ao nível da micropolítica e microprocesso de trabalho, e, 2.9. Criação e funcionamento de Colegiados de Gestão Regional, de Secretarias Municipais de Saúde e representação da Secretaria Estadual, com incumbência de viabilizar a diretriz da Regionalização.
                 O conjunto das estratégias incongruentes vem revelando crescente hegemonia sobre o conjunto das congruentes, o que é constatado por: a) A Atenção Básica, incluindo a rede de UBS’s, as ESF/ESB e os NASF não conseguem ultrapassar, na média nacional, a linha da pobreza, nem a baixa resolutividade, nem a assunção da porta de entrada preferencial, nem a estruturação do novo modelo de atuação, permanecendo focalizada, e o modelo centrado no atendimento de demanda de doentes e sintomáticos, sob a lógica da oferta e não das necessidades e direitos de toda a população e por isso, ordenado pela assistência especializada, pelo apoio diagnóstico, pela hospitalização e pela urgência; b) A grande inclusão da população antes excluída se deu com alta produção neste modelo de atenção, c) Os gestores descentralizados estão diariamente compelidos a atender demandas reprimidas, priorizando as urgências e o mais graves por motivo humanitário e pela sua governalidade, e a secundarizar o atendimento dos menos graves, dos eletivos e da proteção de riscos, angustiados pelo fato de que essa secunadrização é forte geradora dos mais graves e urgentes, d) A mesma “escolha de Sofia” é exercida pelo Ministério da Saúde ao ser compelido a executar seu orçamento priorizando a média e alta complexidade assistencial, sob pressão dos prestadores de serviços e dos fornecedores de insumos, o que resultou em quedas entre 40 a 50% nos valores reais dos repasses do Ministério aos Municípios, para Atenção Básica e o SAMU, entre 1.998 e 2.010.
                 Além de desconsiderar a construção do modelo de atenção com base no “Rumo Maior” constitucional, a resultante das implementações das estratégias incongruentes e congruentes, desconsidera e desestrutura a consciência e a mobilização social em torno do direito de cidadania à saúde e de um sistema público universal e de qualidade, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento da consciência de segmentos corporativos, na disputa do acesso ao mercado de bens e serviços de saúde subsidiado com recursos públicos, acesso esse facilitado pelo rápido crescimento da oferta por esse mercado. Já ao final dos anos 90 estava inequívoca a aspiração e adesão da classe média e dos trabalhadores sindicalizados aos planos e seguros privados subsidiados inclusive dos servidores públicos estatutários, sob negociações permanentes das direções e centrais sindicais. Até o conjunto dos conselhos da saúde acabou por refletir os descaminhos entre o “Rumo Maior” e os “Rumos Adicionais” da politica de saúde, ao não entender e engajar no alto patamar de lutas políticas que é o de atuar na formulação de estratégias, sua primeira responsabilidade e atribuição legal, fruto das intensas e ricas lutas democráticas dos anos de 1.989/1.990, que geraram a Lei 8.142/1.990. Tampouco o conjunto dos conselhos assumiu um imprescindível desdobramento das suas reuniões mensais geradoras de acesso a importantes informações e conhecimentos, que é o de promover e comprometer cada conselheiro(a) na informação e politização da sua entidade, para a imprescindível politização e mobilização social em defesa do SUS .
3. A Politica Pública de Saúde Implícita, o Rumo e o Referencial Jurídico-Legal
                 É de amplo reconhecimento que o movimento da reforma sanitária e os avanços na implementação do SUS vem há vários anos denotando perda de folego ou finalizando uma etapa histórica ou perdendo o rumo inicial, etc. Entre inúmeras análises, diagnósticos e prognósticos, buscam-se causalidades por dentro do movimento como: a) Polarizou-se no pragmatismo operativo em luta desigual no campo de  batalha do financiamento, da burocracia estatal e da privatização, insistindo em resistir e avançar na perspectiva só do gradualismo e incrementalismo, mas alienando-se da análise politica e da disputa na formulação de estratégias, b) Polarizou-se nas trincheiras acadêmicas e de órgãos de pesquisa de produção teórica,  mais cômodas , alienando-se da imprescindível fonte de novos conhecimentos, saberes e bases de disputa na formulação de estratégias, gerada essencialmente no esforço diário e angustiante de gerir na ponta do sistemas o gasto público e a atenção as necessidades de saúde da população, c) Polarizou-se nos movimentos corporativos de interesses tanto de segmentos de usuários por tipos de danos à saúde ou estrato social ou raça ou relação de trabalho, como de segmentos de trabalhadores de saúde, como servidores estatuários ou categoria profissional, d) Adotou-se o marco estruturalista de que sem transformar o conjunto ou estrutura de todo o sistema, pouco se pode avançar na ponta , o que minimiza a imprescindível acumulação de experiência e forças próprias da “ponta”, para a mesma transformação, além de piorar a exclusão social no acesso, acolhimento e atenção, e várias outras.
                 Estas e outras causalidades apontadas são verdadeiras com maior ou menor intensidade. Gilson Carvalho, uma das maiores acumulações, coerência e guia na militância da reforma sanitária e do SUS, pergunta: “em que curvas do caminho perdemos o pé e desviamos?”, referindo-se à geração que adentrou os anos 90 na gestão, nos conselhos de saúde, na academia, nos movimentos sociais, etc.                 Retomando o referencial jurídico-legal abordado no primeiro tópico, cremos poder indagar: - com que conteúdos de interpretação e aplicação do disposto na Constituição, na Lei e nas jurisprudências vigentes e a serem estabelecidas, o Judiciário e o Ministério Público vem cumprindo suas prerrogativas e responsabilidades constitucionais perante o conjunto e cada uma das estratégias incongruentes descritas anteriormente? – como vem sendo interpretados e aplicados os princípios e diretrizes da Relevância Pública da Universalidade, da Igualdade/Equidade, da Descentralização, da Regionalização e da Participação? – Porque a Universidade e a Descentralização foram implementadas desde inicio, em ritmo acelerado, a Igualdade/Equidade e Integralidade não avançam, a Regionalização é pautada só em 2006, pelos gestores descentralizados, no Pacto Interfederativo, e a Participação delimitada a pouco mais que extensão das imprescindíveis tarefas fiscalizatórias aos Conselhos de Saúde?
                 Pretendemos agora contribuir para estas análises e buscas, afirmando que nos encontramos na vigência da implementação de outra politica pública de saúde que há 20anos aparentou somente reagir, distorcer e retardar a implementação do SUS, mas na realidade ganhando com os anos a característica da construção de hegemonia com projetos consistentes, com vários em plena consolidação, o que se infere ao analisar: a) O desenvolvimento planejado e competente, do que chamamos estratégias incongruentes e seus desdobramentos, nos modelos de atenção e de gestão, “modernizando-os” para não reestruturá-los, b) A impossibilidade de se obter dos governantes e seus órgãos de planejamento, assim como das candidaturas às eleições governamentais e legislativas e dos partidos políticos, nos 20 anos do SUS, compromissos com metas, etapas, e prazos, para elevação gradativa no financiamento público, na reforma democrática e administrativa do Estado, na “republicanização” da relação público-privado, na participação real da sociedade civil na formulação da política pública e nas estratégias para sua implementação, mesmo que esses compromissos, metas e etapas se estendam ao prazo longo de quantas gestões governamentais forem necessárias. Destacamos a finalidade simples de cumprir os princípios e diretrizes constitucionais, mas de grandeza estadista de redefinir o rumo, já que o rumo real nestes 20 anos é o de consolidar o “SUS pobre para os pobres e complementar para as empresas de planos e seguros privados e seus afiliados.” Em outro ângulo: o RUMO MAIOR constitucional foi sendo substituído nos 20 anos pelo conjunto de rumos adicionais (estratégias), hegemonizados pelos incongruentes, e estes, fruto da emergência na sociedade, a partir de 1.989, de nova hegemonia na relação das forças econômicas, sociais e políticas. Não por coincidência o Relatório do Banco Mundial (BIRD) de 1.995 refere às bases do “SUS real”, o que encontra-se ilustrado na última página deste texto.
                 Partindo das tendências mundiais e em nosso país, verificamos que nos anos 80 revelou-se em escala planetária a hegemonia do capitalismo financeiro especulativo sobre o capitalismo industrial, assim como as consequências dessa hegemonia sobre os tesouros nacionais e bancos centrais das nações em desenvolvimento e as mais desenvolvidas.
                 Desde então, os Estados de Proteção Social (europeus e Canadá, Japão, Coréia, Austrália, Nova Zelândia e outros), com prerrogativa de agente econômico, vem sendo fortemente compelidos a se limitar a árbitro ou gerente das relações econômicas do mercado e reduzir ou abdicar das políticas públicas de proteção social universalista como saúde, previdência, educação, meio ambiente e outras. Em nosso país, que nessa mesma década emergia da ditadura, as mobilizações sociais e a Constituição resistiram e apontaram para o Estado de Proteção Social, seguindo movimento similar das sociedades portuguesa e espanhola que superaram suas ditaduras ao final dos anos 70.
                 Nestes Estados de Proteção Social a consciência e mobilização social em função dos direitos de cidadania vêm resistindo ao retrocesso e pressionando pela reprodução dos pactos sociais com os agentes de mercado que detém o grande capital e seus prepostos no Estado, ainda que estes agentes tenham se fortalecido a partir da crise de 2008. É importante lembrar que esses pactos começam a ser engendrados antes da 1º guerra mundial, sistematizam-se mais no pós-guerra (ver formulação de Dawson na Inglaterra), expandem-se como alternativa ao socialismo soviético e da Europa oriental, reciclam-se e resistem à queda desse socialismo e à emergência do neoliberalismo, e até este momento, à crise de 2008 e seus desdobramentos, merecendo acompanhamento cuidadoso na Grécia, Portugal e Irlanda. Em nosso país, com grau bem menor dessa consciência e mobilização, o conflito Direito Constitucional x Economia Real certamente justifica os seguintes comentários de Jairo Bisol: “Diante das grandes mudanças econômicas globais a partir dos anos 80, o Direito mais uma vez revela sua história de namorar em sua juventude com a justiça, mas acabar casando com o Poder”. Ressalvamos aqui o entendimento de Justiça nessa citação, como um valor inerente aos poderes Executivo, Legislativo Judiciário, e que vemos a questão do poder originar-se e realizar-se nas disputas de interesses e aspirações dentro da sociedade, entre suas classes e segmentos, sendo o Estado o palco privilegiado dessas disputas, não é poder, mas as ferramentas de exercício do poder: arrecadação, normatização, gastos públicos, polícia, justiça, etc. Voltando a Bisol: “Onde concentra o poder concentra o embuste, e assim devem ser entendidas a Constituição Federal instituída e a Constituição real, e a Justiça acaba por se balizar na normatividade do Estado-Poder. A locomotiva que se desgarra do rumo inicial não diz respeito só à política pública de Estado, como também à nossa própria consciência histórica. Só a sociedade civil que definiu o rumo inicial, poderá inventar como voltar ao rumo e à utopia que nos dê direção. No Estado de Direito o poder instituído não decorre automaticamente das normas e competências, mas sim nos limites do exercício do poder na sociedade. O Poder Judiciário real está nos tribunais de justiça e de recursos, com seus membros escolhidos pelo Poder Executivo, este poder real concentra maior peso dogmático”.
                 Quanto à construção da articulação entre os direitos individual e coletivo e social, sua complexidade e singularidades, não podem ser subestimadas. Está ainda fortemente presente no interior do SUS assim como na Justiça, a herança assistencial de atender passivamente e comodamente consultas, exames e internações: demanda individual de pessoas com doenças ou sintomas. Os princípios e diretrizes constitucionais obrigam o sistema de saúde a, ativamente, proteger as pessoas e coletividades expostas às várias formas de riscos à saúde, detectar as doenças precocemente, e cuidar continuadamente dos crônicos; somente na falha dessas obrigações, atender as doenças plenamente instaladas, e seus agravamentos.                   Por isso, essa herança assistencial descumpre o principio da Integralidade e propicia condições para que o direito individual, inalienável do cidadão, seja usualmente desfigurado pelos interesses dos produtores de medicamentos, de equipamentos, de exames diagnósticos e por parte dos prestadores de serviços assistenciais, em detrimento dos direitos coletivos. Essa herança desfigura também os próprios direitos individuais, igualmente legítimos e importantes, preteridos por uns poucos atendimentos individuais, por meio da desigualdade no acesso a escritórios de advocacia especializada e especialmente articulada, e agora o principio descumprido é o da Igualdade/Equidade. Citando novamente Jairo Bisol, “a proteção judiciária dos direitos sanitários, concebidos originalmente para serem operados como direitos de natureza coletiva, acaba pulverizada em milhares de pedidos de tutelas individuais – conflito entre Caio-cidadão e Tício-Estado – ajuizados, via de regra, por advogados privados ou pela Defensoria Pública. Tais conflitos, originalmente de natureza coletiva, são interindividualizados na via processual e encontram tutela no sistema judiciário, multiplicando a irracionalidade no interior do Sistema Único de Saúde dificultando ainda mais a gestão de uma saúde pública marcada pelo subfinanciamento”.
                  Na prática a construção da articulação dos direitos sociais, coletivos e os individuais, inalienáveis ao ser humano, requer esforço conjunto dos gestores do SUS com seus conselhos de saúde do judiciário e do Ministério Público, no âmbito do Direito Sanitário.
 4. Possibilidades e Potencialidades
                 A política setorial de saúde real (implícita) nos parece inserida no conjunto mais amplo e geral das politicas públicas de Estado do real projeto nacional de desenvolvimento econômico e social a partir dos anos 90; e sua reversão efetiva para o rumo consagrado nos princípios e diretrizes do SUS, nos parece inserida na reversão do próprio projeto nacional de desenvolvimento. Parece-nos, contudo haver entre os ângulos setorial e geral um inquestionável espaço de acumulação setorial de forças políticas e de praticas da saúde, que deve continuar sendo desenvolvido na implementação dos referidos princípios e diretrizes, sem depender totalmente da reversão do projeto nacional, mas que, gradativamente, a ele deve ligar-se para ampliar suas mobilizações e força politica. Citaremos para finalizar, alguns exemplos setoriais e após, alguns gerais, a guisa de contribuição ao debate e à formulação de estratégias.
Setoriais
-           No espaço local, comunitário ou distrital da construção da Atenção Básica, ainda que com os limites e distorções já apontados, mantém-se no território nacional um a dois milhares de núcleos ou “nichos” de trabalhadores de saúde, gestores locais, representações de usuários e outros, que, comprometidos com os princípios e diretrizes das necessidades, direitos, da atenção integral e equitativa, formulam e realizam persistentemente projetos, nesse nível, incluindo articulações de apoio e estratégias de continuidade. São as experiências exitosas ou parcialmente exitosas, e quantas se inviabilizam com os anos, são quantas novas que surgem. Parte delas são fortalecidas e qualificadas por ingração com iniciativas acadêmicas de ensino, serviço e produção de conhecimentos. Periodicamente são selecionadas para serem apresentadas em mostras de experiências exitosas durante eventos do SUS. Estes “nichos” parecem constituir uma base social com grande potencial para o SUS.
-         Os coletivos dos Conselhos Estaduais de Secretarias Municipais de Saúde  - COSEMS e mais recentemente dos Colegiados de Gestão Regional – CGRs, em suas reuniões ordinárias e congressos, revelando surpreendentemente capacidade de acumulação na gestão descentralizada de experiências e de resistência ao desmanche, na prática, dos princípios e diretrizes do SUS. Aqui nos parece residir outra base, social e institucional decisiva a favor do SUS.
-              Os conselhos de Saúde, desde os locais por unidades e distritos até o nacional, passando pelos municipais e estaduais, acumulando nos 20 anos do SUS, um fundamental espaço de ação política, com preenchimento difícil, complexo e pouco efetivado, que é a sua primeira atribuição legal ( Lei 8142/90) de atuar na formulação de estratégias, e cuja ocupação parece-nos relacionar-se, entre outros fatores, ao debate e formulação nos conselhos, das responsabilidades e atuação de cada conselheiro, perante as direções e lideranças das entidades da sociedade representadas, no sentido de incorporarem as informações, conhecimentos e posicionamentos gerados mensalmente nas reuniões dos conselhos. Aqui, ainda que menos tangível, parece haver um substrato social fundamental para a retomada da pujança dos movimentos sociais pela cidadania.
-        O poder Legislativo, que sob articulações persistentes das entidades e movimentos sociais, gerou o titulo da Ordem Social da Constituição e as Leis Orgânicas da Saúde: a nacional, as estaduais e as municipais, e ao nível nacional, a realização de simpósios de saúde que muito contribuíram para a construção do SUS, especialmente os de 1.979, 1.982, 1.984 e 2005; parece-nos que é ainda o poder mais sensível às demandas sociais persistentes e articuladas.
-                 Exemplos de metas para compromissos do poder Executivo e Legislativo, de retomada ao rumo do SUS legal, no âmbito da política de Estado: a) elevação do per-capita anual público (em dólares públicos padronizados para comparação internacional), dos atuais 340, em etapas para 500, 750 e 1.000 (ainda metade da média de 2.000 no “modelo europeu”), onde os 10% da RCB federal serão a plataforma inicial, etapas estas vinculadas às reformas administrativas da gerência administrativa estatal, b) elevação da cobertura e resolutividade da Atenção Básica por etapas para 50%, 60% e 70% (ainda abaixo da média do “modelo europeu” entre 80 e 90%), c) reforma administrativa da gerência estatal da prestação de serviços públicos, ampliando e descentralização e autonomia gerencial aos distritos e unidades de saúde e contrato de metas e desempenho com base nas necessidades da população, reforma esta, vinculada à elevação do financiamento público, d) retração por etapas dos subsídios públicos às empresas de planos privados e seus afiliados, e) assunção da definição de papéis e responsabilidades do setor público e privado na saúde e respectiva regulação, pela articulação CNS/CIT/ANS ao nível nacional e CES/CIB/ Representação da ANS em cada Estado, etc. Quanto à rede privada realmente sem fins lucrativos, efetivar a remuneração a valores não inferiores aos custos, pelo cumprimento de metas e qualidade pactuadas segundo as necessidades da população, aprovadas nos colegiados de gestão regional e nos conselhos de saúde, atendendo as diretrizes da Universalidade, Integralidade e Equidade.
Nacionais
                   Trata-se da dinâmica da relação Sociedade-Estado e a Reforma do Estado com ampla participação da Sociedade, o que abarca o pacto social e o pacto federado, tendo como horizonte as bases de um projeto nacional de desenvolvimento socioeconômico. Um dos maiores dilemas e desafios é se há ou não, interesse e visão política do complexo produtivo de bens, serviços, ciência, tecnologia e inovação, de assumir comando sobre o complexo financeiro especulativo, e se disso depende ou não, a ampliação para toda a sociedade, de maior acesso aos frutos do desenvolvimento. Ângulos da reforma do Estado:
- Politico. Novo equilíbrio entre a democracia representativa e a participativa a favor desta. Redução e contenção da promiscuidade mafiosa que se avoluma nas relações Estado – Grande Capital Empresarial e entre os poderes Executivo, Judiciário e Legislativo. Na politica administrativa, a modernização e simplificação do secular centralismo, burocratismo, desperdício e ineficiência da maquina estatal, reestruturando-a para gerir e dar conta, com qualidade, das complexas demandas sociais básicas, sem a atual promiscuidade predatória de terceirizações privatizantes, nem satanização de possíveis parcerias público-privadas de interesse público.
- Econômico. Geração e incorporação intensiva de ciência/tecnologia/inovação/valor agregado na produção industrial e agropecuária, alternativa à inaceitável dependência da exportação de matéria primas/comodities. Inversão da sub-taxação nas importações e sobretaxação nas exportações. Reversão da profunda regressividade do sistema tributário e fiscal. Investir muito mais nas politicas públicas de proteção social enquanto estratégia básica do desenvolvimento econômico. Relativizar a dependência atual do enorme crescimento da divida publica sob as maiores taxas de juros e outras taxações de risco, como grande e único eixo de controle da inflação, etc.
- Social. Implementação de politicas publicas universalistas de proteção social em áreas básicas como educação, saúde, previdência-social, segurança publica, habitação e outras, sem prejuízo dos programas de transferência de renda e ativação do mercado interno.
                  Ao finalizar, vale lembrar que se nossa politica de Estado insistir em assemelhar alguns indicadores da nossa politica real de saúde aos dos EUA, como % de origem pública nos recursos totais para saúde, % dos recursos públicos de saúde no PIB, e fortes subsídios públicos à produção e consumo de serviços no mercado, sem qualquer outra semelhança social, econômica, cultural e histórica, teremos não mais que uma caricatura do sistema privado de saúde daquele pais.
Relatório Banco Mundial: Brasil/1.995

(Adaptado da Tese “O Banco Mundial e as Política de Saúde no Brasil nos Anos 90: Um Projeto de Desmonte do SUS” – Maria Lucia Frizon Rizzoto – 2.000)

1. Desaconselha a Descentralização com Acesso Universal e Equidade porque não haverá recursos governamentais.
2. Propõe revisão Constitucional e Institucional para:
2.1 – Fortalecer os Estados para assumirem os serviços assistenciais clínicos, fugindo da inexperiência e corrupção das Secretarias Municipais de Saúde.
2.2 – Assunção pelo governo federal do papel de regulamentar políticas de contenção de custos e de restrição do acesso, e estimular o co-pagamento e a instituição de mercados internos nos sistemas públicos.
2.3 – Extinguir a preferência às entidades filantrópicas sem fins lucrativos.
2.4 – Estimular a ampliação de planos e seguros privados.
2.5 – Reduzir os investimentos públicos em assistência médica e enfatizar as ações preventivas.
2.6 – Focalizar os serviços públicos à população pobre e para tanto reformar instituições e o sistema financeiro.
2.7 – Aumentar a produtividade e limitar a tecnologia ou o acesso à tecnologia.



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